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A tríade Atená, Andrômeda e Medusa nas mulheres

As mitologias antigas projetaram a estrutura interior da psique humana no mundo exterior, como deuses e deusas, representados como forças da Natureza. Essas representações mitológicas espelham os padrões da nossa própria natureza interior, demonstrando claramente a multiplicidade presente na nossa Alma. A Deusa, por exemplo, é um arquétipo eterno da psique humana, refletindo nossa relação com o feminino, manifesto na cultura sob vários disfarces, desde tempos antigos.

Nos últimos 2500 anos, testemunhamos a ascensão de divindades masculinas, chegando no triunfo das religiões patriarcais, que, aos poucos, foram minando o lugar e o poder da Deusa. Passamos a nos referir à força superior que nos cuida, ilumina e conforta, como estritamente masculina, nublando nossa percepção do mundo, de nosso corpo e de nós mesmos, sejamos homens ou mulheres. Fomos afastados do feminino essencial, que é, também, nossa substância. E fomos lançados na estrutura religiosa do patriarcado, que nos apresenta divindades rivais, deuses bons e deuses maus, em sua incapacidade de reunir opostos.

Em contraposição, temos a visão feminina da deusa, reconhecida, por exemplo, nas mudanças da Lua: sombria na Nova, luminosa na Cheia e seus intermediários crescentes e minguantes. Neste sentido, a deusa tem caráter tríplice, mutável, traz em si todas as polaridades, assim como a capacidade de reunir opostos. Justamente por isso, ela é tão assustadora, nos parece contraditória, desafiando o pensamento unilateral do “isso ou aquilo”. A deusa agrega infância, mocidade e velhice; passado, presente e futuro; manha, tarde e noite entre tantas outras tríades da natureza.

Encarar a multiplicidade na unidade é o convite da deusa, e acolher esse poder feminino em nós, para então, almejar a meta maior: o hierogamus, o casamento místico entre os aspectos masculinos e femininos da nossa alma, considerada “a mais estimulante e valiosa aventura que qualquer ser humano pode empreender”[i] . O Mito de Perseu[ii] nos apresenta tanto o caráter masculino quanto o feminino em nós, onde vemos claramente a faceta tríplice da deusa por meio das três forças arquetípicas femininas que se entrelaçam: A deusa Atená, a górgona Medusa e a princesa Andrômeda. Li e reli versões do mito, discuti em grupo de estudos, busquei suas imagens em meu próprio funcionamento como mulher, tive noites de sono perturbadas por tais imagens. Do mergulho profundo nesse universo imagético intenso, surgiram, escritos, colagens e impressões pessoais sobre o caráter tríplice do feminino no Mito de Perseu, e em nós, mulheres de hoje. Compartilho aqui um pouco dessa viagem.

A deusa me chega por meio de uma colagem que traz três mulheres com posturas e atitudes nitidamente diversas. Ela me diz que é uma pulsão tríplice em mim, relacionada ao meu desenvolvimento como mulher num mundo patriarcal. Me conta que tudo começa com Andrômeda...

Andrômeda, surge em mim lá pelos 11 anos, quando o corpo inicia suas mudanças junto com o recente interesse pelos meninos, e onde a ingenuidade própria da meninice fica vulnerável diante do padrão cultural romântico dos contos de fadas e, sucumbe, limitando seu erotismo. Andrômeda usa um longo vestido de princesa, que esconde um corpo que desabrocha inconsciente, deixando à mostra as bochechas rosadas da infância e apertando os jovens seios quase fartos. O corpo parece estar em movimento, e a mão direita procura, pede ou espera algo. Parece lhe faltar alguma coisa (ou alguém) que virá de fora, ela crê. Seu cabelo é bonito, sensual e feminino, mas ela não se dá conta. É manhã, o dia está claro e uma pequena árvore compõe sua parte do cenário, mas será praticamente atropelada por ela, que nada vê além de seus sonhos e ilusões. Sua mão esquerda, atrai pra si, também inconsciente, sua faceta mais madura - Atená.

O cenário de Atená é composto por uma árvore grande, na qual ela está literalmente trepada, demonstrando sua conexão com a natureza externa. No entanto, seu pés não tocam o chão. Ela enxerga do alto, tem sabedoria e visão estratégica. Usa roupa casual e prática, pois tem o que fazer, tem metas a cumprir. Ela está conectada ao mundo e às pessoas e prioriza sua atuação em seu meio, diferente de Andrômeda, inconsciente do corpo e do mundo que habita. Atená aprecia a beleza, a arte, o conhecimento e observa, com certa nostalgia, Andrômeda, a menina inconsciente de sua força, beleza e inteligência, esperando por um príncipe que a salve. Parecem tempos mais fáceis. Atená traz certo cansaço de tantas tarefas e de tamanho envolvimento com o mundo. Talvez inveje o instinto amoroso presente em Andrômeda, e que em si, nem sabe onde encontrar. Ela sabe que não há príncipe por quem esperar, reconhece o que seja um relacionamento maduro e saudável, no entanto, não tem a mínima ideia de como iniciar um movimento rumo a intimidade amorosa e sexual. Tornou-se uma expert em relacionamentos de outras ordens. Sua mão direita, ternamente, quer tocar a mão de Andrômeda, como se pudesse contar-lhe, pelas palmas das mãos, tudo o que sabe sobre liberdade e autonomia feminina. Atená vive no período da tarde em céu claro e tem metas maiores do que si mesma, metas coletivas. Porém, busca metas íntimas, quer ouvir as fomes mudas de seu corpo invisibilizado pelo trabalho e pelos ideais de organização coletiva. Sua cabeça toca a cabeleira de cobras de Medusa, sendo perturbada por essa energia.

Medusa tem metas íntimas e pessoais, mas é egoísta: quer possuir pessoas, ideias e coisas. Medusa seduz os homens, mas de fato, não os deseja. Ela gosta do jogo do poder, de atrair com seu belo corpo, mas, paralisa qualquer um que chegue muito perto e que tente olhá-la verdadeira e profundamente. Medusa é superficial, compulsiva, competitiva, extremamente vaidosa e sexualizada, embora, sem abertura real para a entrega amorosa. Em sua roupa, vemos cordas nas região do sexo mostrando o quanto ela está trancada, paralisada e enfeitiçada por sua própria imagem. Sua conexão com a natureza é desequilibrada e desmedida. Ela se sente poderosa como a própria natureza, apresentando os dedos da mão esquerda como galhos de uma árvore, desumanizando-se e sucumbindo aos instintos mais primitivos. As cobras em sua cabeça expressam ódio, raiva, rancor, mas no fundo, escondem uma enorme fome de afeto e amor. Sua boca aberta com a língua de fora nos fala de uma oralidade carente, de uma ferida antiga e profunda com a qual ela não quer entrar em contato. Talvez, por baixo da terra, sua raízes se conectem às raízes da pequena árvore de Andrômeda, bem como sua futura frustração com o príncipe desencantado que não suprirá o algo que ela tanto espera (e que guarda em si, sem saber). Ao mesmo tempo, Atená, dá um suave chute no bumbum de Medusa, como quem diz: Relaxa e goza! (Por mim!)

Um dado importante e perturbador: Embora a maioria dos autores narre o mito de Medusa como a bela mulher que quis competir em beleza com Atená ou mesmo desrespeitou seu templo, em Ovídio, temos Medusa como uma bela sacerdotisa do Templo de Atená que foi estuprada por Poseidon, deus dos mares. Nessa narrativa, o masculino é absolvido e o feminino, culpabilizado, como vemos cotidianamente na atualidade. Assim, Atená é vista como uma deusa que enaltece o masculino em detrimento do feminino, já que, afinal, ela é A Filha do Pai. O estupro não muda muito os segredos que a colagem me contou, apenas torna mais claro o desequilíbrio em Atená, assim como a dor oculta de Medusa, proveniente de uma violação em seu espaço pessoal, ferida transformada em ódio. Ao mesmo tempo, vemos claramente como as três figuras, Andrômeda, Atená e Medusa, prescindem umas das outras para estarem em equilíbrio. Atená sem as outras duas, torna-se mente masculinizada sem corpo; Andrômeda sem a autonomia de Atená e a intuição de Medusa, torna-se refém e submissa às relações afetivas; enquanto Medusa, sem a clareza mental, os propósitos coletivos de Atená e a pureza sonhadora de Andrômeda, torna-se fria, egoísta e vingativa.

Mas e Perseu nisso tudo? Sinto necessidade de criar outra obra que me ajude a mergulhar mais profundamente nesta imagem masculina em mim. De fato, Perseu pode ser representando como o lado masculino na mulher, cuja tarefa dentro desse mito, é encarar e integrar as três facetas da deusa, possibilitando a harmonia entre o masculino e o feminino em nós, representado por sua união com Andromêda. A tarefa não é fácil e se inicia com a necessidade de afastar-se da mamãe! Longe do universo protegido e infantil materno, Perseu pode desenvolver qualidades, projetadas nos objetos que receberá para vencer a Medusa e casar com Andrômeda. Penso, na mulher que, para amadurecer, precisa, também, afastar-se da mãe real, de seus cuidados excessivos, para então, interiorizar essa maternagem, numa pulsão interna e sábia de autocuidado e auto-amor.

Longe da mãe, Perseu aciona novas forças representadas pelos presentes que recebe dos “espíritos tutelares” que o auxiliarão. Mas, o que, significam, para nós mulheres, tais objetos? Que poderes eles conferem ao nosso masculino interno?

  • Da deusa Atená, ganha um escudo, semelhante a um espelho e o conselho de nunca olhar a Medusa nos olhos – este presente traduz-se em autoconhecimento por meio da capacidade de reconhecermos, em nós, o aspecto sombrio de Medusa, sem nos perdermos nele. E ainda perceber o que nele há de positivo, afinal, de sua cabeça nasce Pégasus, o cavalo alado da criatividade, além de que Medusa é a górgona da espiritualidade, mística e mágica. Mergulhar nos olhos de Medusa significa paralização e regressão a aspectos inconscientes, no entanto, parte desse conteúdo interessa à nossa alquimista interior. O escudo afasta mas também auxilia na seleção do que importa e do que não interessa à psique;

  • De Hades, deus que governa o mundo subterrâneo e as almas após a morte, recebe o capuz da invisibilidade. Talvez este presente se traduza na nossa capacidade de nos recolhermos, não sermos vistas, de aquietar o ego. Fala da introspecção necessária e da arte de não chamar muita a atenção, mantendo o foco no mundo interior e na tarefa a ser alcançada. Quem nunca se perdeu em vaidades e exibicionismo, esquecendo até qual era a sua meta?;

  • De Hermes, deus da comunicação e da hermenêutica oculta, recebe as sandálias aladas, com as quais viajará por muitos lugares num tempo curto, carregando a cabeça de Medusa na tarefa de paralizar processo nocivos ou estabelecer limites mais claros. As sandálias, vindo de Hermes, tem relação com a troca e a arte da comunicação humanas, favorecendo que o herói (nós) otimize o término de relações nefastas, que ele paralisa (como os aspectos sombrios que encontrará no pai de Andrômeda).

O mito fala ainda de outros dois presentes, menos citados nas narrativas que encontrei, mas vitais para a conclusão da meta de Perseu: a foice, para cortar fora a cabeça da fera, que nos dá coragem e precisão na eliminação de aspectos sombrios em nós; e a kibisis, uma espécie de alforje ou sacola mágica para transporte da cabeça de Medusa. No Mito, vemos que a jornada de Perseu não termina ao cortar a cabeça. Ele ainda precisará peregrinar com ela, carregá-la consigo, adquirindo conhecimentos ocultos, até, finalmente, desfazer-se dela, entregando-a à deusa Atená, que a colocará dentro de seu escudo, fortalecendo-o e tornando capaz de paralisar seus inimigos.

Masculino empoderado e feminino integrado levam ao hierogamus, casamento interno do masculino e do feminino em nós. Me pergunto se essa união interna é uma meta a ser alcançada, ou um estado de ser que experimentamos em momentos de extrema conexão. O que você acha?

Anasha Gelli

[i] A deusa tríplice, Pag 14

[ii] Pesquise O Mito de Perseu no google.


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